É sabido que no Brasil milhões de imóveis apresentam irregularidades documentais, pelos mais variados motivos. Tais irregularidades podem se dar, por exemplo, por conta de ausência de registro imobiliário (transcrição ou matrícula), tema este que será tratado no presente artigo.
Pois bem, diante do déficit de moradia no país, por conta de ainda ser custoso adquirir um imóvel bem localizado e nos moldes desejados, grande parte da população não possui recursos financeiros para a compra de imóveis legalizados (entenda-se como escriturados e registrados). Assim, opta-se por negócios que englobam tão somente a transferência da posse ou que, mesmo que possuam a finalidade de transferência da propriedade, se operam de modo inadequado e sem a assessoria devida.
É dessa maneira que negócios imobiliários realizados há décadas, de forma informal e até mesmo verbal, se perpetuam através das gerações e trazem problemas para aqueles herdeiros e/ou adquirentes que desejam realizar a regularização documental do imóvel.
Ocorre que, quando os atuais moradores passam a se preocupar com a situação documental do imóvel (seja por conta da necessidade de inventariar o bem, obter licenças e alvarás junto aos órgãos responsáveis, buscar empréstimo dando em garantia o imóvel), descobrem que a inexistência de documento que comprove a propriedade do imóvel (matrícula ou escritura pública) é um verdadeiro entrave às suas intenções.
Diante de tais situações, é costumeiro deparar-nos com um negócio que foi celebrado de forma verbal ou, quando por escrito, tão somente através de um compromisso particular de compra e venda. Em tal documento existe a figura do terceiro que prometeu vender o imóvel (promitente vendedor), e do promitente comprador, que promete pagar o valor acordado pelo imóvel. Ocorrendo a quitação do negócio, o promitente vendedor tem o dever de outorgar escritura pública para o promitente comprador, de forma que este passe a ser o proprietário do imóvel.
A problemática reside no fato que, mesmo havendo a quitação do negócio, a escritura pública nunca tenha sido lavrada. Como cenário comum, os atuais ocupantes desconhecem a existência de recibos de pagamento (muito comum quando o imóvel foi adquirido por algum familiar já falecido ou por pessoa jurídica que já encerrou as atividades ) ou algum documento que possa ser útil a fim de comprovar que o vendedor realmente recebeu a importância devida (extremamente importantes para a propositura de uma ação para suprir a outorga da escritura). Assim, normalmente passam-se décadas sem qualquer reclamação do promitente vendedor, que na maioria dos casos realmente recebeu tudo o que lhe era devido e já até mesmo faleceu ou sendo pessoa jurídica, consta como baixada junto à Receita Federal.
Posto isso, enfrenta-se outro problema. Um imóvel com titularidade não regularizada, além de não possuir o mesmo valor de mercado que um imóvel com a documentação em ordem, também não pode ser utilizado como garantia para operações financeiras (como a hipoteca) e tampouco pode ser objeto de ampliação ou reforma junto à Prefeitura, visto que o possuidor não detém a propriedade e os órgãos e instituições financeiras exigem que o imóvel esteja registrado em nome do interessado.
Por conta de tal situação é impossível não recordar da palavra “usucapião”. A usucapião se caracteriza pelo direito que o indivíduo adquire em relação à posse de um bem móvel ou imóvel em decorrência da utilização do bem por determinado tempo, contínuo e incontestadamente. Muitas vezes, se mostra a única solução para casos envolvendo a regularização documental.
Assim, através da usucapião, o interessado (possuidor) busca o reconhecimento do seu direito de propriedade, através da comprovação de diversos requisitos legais. Por conta da complexidade da usucapião, seria impossível tecer considerações completas a respeito de todos os requisitos, considerando que a lei prevê diversas modalidades de usucapião (citando apenas algumas, que são as mais usuais: extraordinária, ordinária e especial) e para cada uma delas são elencados diferentes requisitos, que devem ser analisados caso a caso.
A intenção no presente momento é esclarecer como o possuidor pode pleitear a usucapião do imóvel, posto que atualmente a legislação brasileira prevê também a possibilidade da usucapião extrajudicial, ou seja, a ser requisitada perante o Registro de Imóveis. Diferentemente da usucapião judicial, da qual muitos já ouviram falar, a usucapião extrajudicial ainda é novidade.
O Novo Código de Processo Civil alterou a Lei de Registros Públicos (6015/73), e assim foi instituída a usucapião extrajudicial através do artigo 216-A da Lei 6015/73, o qual trata da usucapião extrajudicial. Desse modo, além da possibilidade de pleitear-se a usucapião perante o Poder Judiciário, aos interessados também foi conferida de realizar tal pedido perante ao Registro de Imóveis onde deveria estar registrado o imóvel. Ou seja, até o ano de 2015 a usucapião apenas era possível através de ação judicial.
Inicialmente, diante de tal novidade, estudiosos apresentaram posicionamentos divergentes a respeito da usucapião extrajudicial, assim como os interessados não estavam certos sobre a segurança que o procedimento apresentava.
Com o passar do tempo, tais divergências foram diminuindo e a segurança jurídica aumentando. Em 2017, o Provimento nº 65 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) estabeleceu diretrizes para o procedimento da usucapião extrajudicial nos serviços notariais e de registro de imóveis, colocando fim à inúmeras dúvidas que não haviam sido esclarecidas através da redação do artigo 216-A da Lei de Registros Públicos.
Tal como uma ação de usucapião, o procedimento via extrajudicial também apresenta diversos requisitos a serem observados, não estando livre de complexidades. Todavia, como vantagem primária da usucapião extrajudicial, está a redução do tempo para a conclusão do procedimento. A depender da complexidade do processo judicial, o interessado poderia ter que aguardar por muitos anos até o julgamento da demanda, o que não se espera da usucapião extrajudicial.
Como documentos essenciais a serem apresentados no procedimento extrajudicial, o artigo 216-A da Lei 6015/73 dispõe:
Art. 216-A. Sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório do registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do interessado, representado por advogado, instruído com:
I – ata notarial lavrada pelo tabelião, atestando o tempo de posse do requerente e seus antecessores, conforme o caso e suas circunstâncias;
II – planta e memorial descritivo assinado por profissional legalmente habilitado, com prova de anotação de responsabilidade técnica no respectivo conselho de fiscalização profissional, e pelos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes;
III – certidões negativas dos distribuidores da comarca da situação do imóvel e do domicílio do requerente;
IV – justo título ou quaisquer outros documentos que demonstrem a origem, a continuidade, a natureza e o tempo da posse, tais como o pagamento dos impostos e das taxas que incidirem sobre o imóvel.
Portanto, há de se mencionar que assim como no processo judicial, na usucapião extrajudicial é obrigatória a representação do interessado (que pode ser pessoa física ou jurídica) através de um advogado. As Fazendas Públicas (União, Estado e Município) também precisam se manifestar no processo administrativo, pois assim que provocadas analisarão se o imóvel objeto da usucapião não se trata de bem público.
Também é essencial a contratação de um profissional apto a elaborar planta e memorial descritivo a ser apresentado ao Registro de Imóveis, e o contato com um Tabelionato de Notas (que seja do município em que estiver localizado o imóvel usucapiendo ou parte dele) para a lavratura da ata notarial.
Em síntese, a usucapião extrajudicial, apesar de ainda caminhar timidamente em comparação à usucapião judicial, é um instrumento extremamente eficaz para a regularização imobiliária. Na BFS Advocacia acreditamos que a desjudicialização dos procedimentos é extremamente benéfica para os envolvidos, sendo de grande valia a adoção de providências extrajudiciais para a regularização de imóveis sempre que possível. Em breve trataremos de outro procedimento extrajudicial com esse fim, a retificação administrativa de medidas e área de imóveis, também previsto na Lei de Registros Públicos.
Artigo elaborado pela advogada Mariana Probst Bogus.